O sufrágio é um processo no qual as diferenças entre as diversidades são resolvidas sem violência. Como resultado desse processo de deliberação coletiva, os participantes se tornam um só por meio de um nexo lógico, como a cidadania. Essa cidadania é o que compõe o universo dos participantes. Nessa universalidade, uma relação recíproca de direito e obrigação é estabelecida entre o indivíduo e o todo, bem como entre o todo e o indivíduo. Todos se reconhecem mutuamente em sua participação, o voto, na busca da vontade da maioria. Portanto, o sufrágio, como um processo universal de participação coletiva, tem o voto como a forma pela qual a vontade do cidadão é expressa.
Nos tempos antigos, o sufrágio era um processo no qual os participantes refletiam sobre sua posição, tornando o debate um importante instrumento de sufrágio. O cidadão então representava sua posição votando em um pedaço de papel ou cerâmica, e a soma de todos os votos dava o resultadoa Nesse sentido, a contagem dos votos também era pública, diante dos olhos de todos para a compreensão comum. Portanto, participar da contagem dos votos, que é de natureza pública, era algo normal a se fazer.
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Refletir sobre a importância do sufrágio como o processo pelo qual podemos resolver as próprias questões políticas da oposição na Venezuela é necessário em um momento em que precisamos reconstruir a força necessária para derrotar o chavismo. Nesse sentido, as primárias de 22 de outubro são importantes.
O voto é um ato público do cidadão no qual ele expressa sua opinião. Apenas seu exercício é secreto. Da mesma forma, o voto é, em sua essência, direto, ou seja, sem intermediários. O agente da ação direta, que é o cidadão, determina o objeto dessa ação por ser a causa eficiente dela*. O eleitor é aquele que converte a potência em um ato no momento da votação e o concretiza em um objeto que é então contado. Daí a importância da materialidade do voto: sua inteligibilidade. Nesta primária, vamos votar em uma cédula que será contada em um ato público que todos os participantes poderão ver e entender e, portanto, cumprirá seu propósito: representar a vontade da maioria e todos nós aceitaremos esse resultado. Tudo isso se baseia no princípio da publicidade: todo ato é público e compreensível para o participante.
A tecnologia não é inimiga do sufrágio, desde que não vá contra esse princípio da publicidade. Mas se a tecnologia é usada para eliminar a materialidade do voto, para realizar um escrutínio além do alcance da compreensão do cidadão, ou seja, em um ambiente virtual incompreensível e além do alcance do participante, e para tudo isso a maquininha é finalmente um intermediário que elimina a natureza direta do voto, então a tecnologia mata a confiança no sufrágio e o transforma de fato em outra coisa: um teatro.
Esse é o problema do TSE venezuelano, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE). Há anos eles vêm fazendo teatro eleitoral e o povo venezuelano não confia mais nessa instituição. Essa é a principal razão pela qual as primárias são confiáveis: porque estão fora do controle dessa entidade chavista.
O uso da tecnologia pode servir para a transmissão do resultado emitido após o processo de contagem pública em cada mesa de seção eleitoral. Isso faz parte de um debate que poderia contribuir para uma profunda reforma eleitoral na Venezuela em um estágio posterior.
De qualquer forma, todos os esforços do chavismo e do setor colaboracionista da oposição estão concentrados e alinhados para não permitir o sufrágio por meio do qual se expressaria a vontade majoritária dos venezuelanos. Não é óbvio demais que essa é uma luta do povo contra as elites corruptas da política venezuelana que vêm se beneficiando dessa ditadura há anos?
Os bons venezuelanos, assim como os antigos, têm plena confiança em um sufrágio livre e justo, pois essa é uma característica da civilização que já faz parte de nossa identidade nacional. É por isso que a luta é para garantir que o sufrágio seja realizado com base no princípio da publicidade, que é o que dá controle e poder ao soberano sobre o processo. Essa é a luta do dia 22 de outubro. O que vem depois desse dia é outro momento, outra batalha.
[*] Sereis como deuses, o STF e a subversão da Justiça. Organização de Cláudia R. de Morais Piovezan. Editora E. D. A. Londrina, Brasil. 2021. P 96